A economia gaúcha, como se nota no gráfico abaixo, apresenta trajetória similar à economia brasileira, porém com oscilações mais acentuadas. Gráfico - Variação do volume do PIB, entre 2003 e 2016 (2016 até o 3º trimestre) Fonte: Fundação de Economia e Estatística (FEE-RS) e IBGE Por apresentar trajetórias parecidas, uma das saídas da crise pela qual enfrenta o Rio Grande do Sul passa, inevitavelmente, pela retomada da atividade econômica nacional. Vale recordar que a Constituição Federal de 1988 prevê a partilha de determinados tributos arrecadados pela União com os estados, o Distrito Federal e os municípios. Sendo as principais transferências constitucionais: o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e o Fundo de Participação dos Estados (FPE), constituídos de parcelas arrecadadas do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre a Produção Industrial. Outros tributos arrecadados pela União, e partilhados entre os entes federados, são o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), o Imposto sobre a Produção Industrial Proporcional às Exportações (IPI-Exportação), a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico sobre Combustíveis (CIDE-Combustíveis) e o Imposto sobre Operações Relativas ao Metal Ouro como Ativo Financeiro (IOF-Ouro). Destacam-se ainda como transferências constitucionais a Lei Complementar n° 87, de 1996, também chamada de Lei Kandir, que tratou do repasse de recursos por conta da desoneração do ICMS incidente nas exportações, e as retenções e transferências para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), que centraliza parcela de tributos (20%) arrecadados por todas as esferas de Governo para aplicação naquele setor de acordo com regras preestabelecidas. Nesse sentido, a PEC 55, que pretende limitar a despesa primária do governo federal pelos próximos vinte anos à inflação do exercício anterior, não altera as proporções e repartição das receitas tributárias da união para com os entes federativos (estabelecidas nos artigos 157 a 159 da CF/88). No entanto, ao servir como um freio ao crescimento do produto nacional, e por consequência ao concomitante crescimento das receitas da união, tal PEC 55 irá influenciar negativamente, e de maneira intensa, as economias regionais. Sabe-se desde Kalecki (década de 1930) que a demanda agregada corrente (gastos) é quem determina o fluxo de renda agregada corrente percebido. Isto é, os níveis de lucros, renda agregada e emprego são resultado dos dispêndios da economia e oscilam de acordo com variações dos componentes da demanda. Caso a PEC 55 estivesse em vigor desde 2006, por exemplo, em 2016 as Despesas efetivas da União com educação, saúde, previdência social e assistência social teriam reduções nos seus orçamentos de R$ 68,7 bilhões, R$ 37,9 bilhões, R$ 194,4 bilhões e R$ 39,1 bilhões, respectivamente. Ainda que sempre seja função do Estado Nacional buscar eficiência nos seus gastos, procurando evitar desperdício e gastos com pouco ou nenhum efeito, trata-se aqui de um verdadeiro desmonte, sobretudo pelas quantias consideradas e o nível de renda per capita do país. O corte na previdência de R$ 194,4 bilhões é quase o dobro do que se pretende gastar com educação no ano de 2016 de acordo com os valores da Lei Orçamentária Anual. O que representaria uma redução de cerca de 34% no Benefício médio assegurado. Isso sem nem mencionar as transformações demográficas e epidemiológicas que a sociedade brasileira atravessa. Existem estudos do IPEA sinalizando justamente o papel dinamizador desses gastos no crescimento econômico. Num estudo de 2011 do IPEA observa-se que o multiplicador dos gastos no PIB seria de 1,85 na educação pública, 1,7 na saúde pública e 1,23 nas transferências constitucionais. Ou seja, para cada unidade gasta nestas áreas, haveria um aumento mais do que proporcional no PIB. Diversas simulações, no entanto, inclusive de bancos privados, têm projetado que com a PEC 55 em vigor, em 2026 a despesa total do PIB reduzir-se-ia em 6 p.p. Além disso, argumenta-se, com o intuito de justificar a desvinculação das despesas com saúde e educação, por exemplo, que o Congresso Nacional, anualmente, poderia destinar recursos adicionais acima da aplicação mínima. Essa hipótese, contudo, parece bastante improvável. Primeiro, porque o já aguardado crescimento vegetativo médio anual dos benefícios previdenciários (transição demográfica) e com saúde (transição epidemiológica) irão impor nenhum, ou pouco, espaço para o comprometimento das demais despesas, dada a regra geral de teto dos gastos primários. Ademais, não se pode negligenciar a influência dos lobbies nessa realocação de recursos, para um dado orçamento total. Por exemplo, se hoje o poder judiciário já não cumpre o teto constitucional em relação aos salários, por que viria a cumprir num cenário de acirramento do conflito distributivo? A PEC 55, paralelamente, impõe menos gastos em áreas prioritárias, como saúde e educação, sem assegurar que ocorram superávits primários e muito menos que ocorra a redução da relação Dívida/ PIB. Isso porque a redução da dívida em ambos os cenários irá depender do crescimento do PIB acima dos juros e também da geração de receitas. Questões desprezadas pela proposta vigente. As razões para a ausência de crescimento econômico do país são inúmeras e, portanto, vão além dos propósitos desse pequeno texto. Porém, propostas de uma agenda progressista deveriam passar, necessariamente, pela: (i) revogação da isenção de tributação a dividendos de pessoas físicas (globalmente uma excepcionalidade brasileira e que proporcionaria receitas entre R$ 43 a R$ 72 bilhões anualmente) e a (ii) revisão da estratégia de estimular o investimento privado através de renúncias fiscais. Vale lembrar que, de acordo com a Receita Federal, em 2015 o Brasil somou R$ 271,8 bilhões em 'gastos tributários' (renúncias fiscais). Essa quantia foi maior do que o gasto do governo federal no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que aplicou R$ 251,7 bilhões no mesmo ano. Em um cenário de recessão, o setor empresarial utiliza-se dessas renúncias apenas para sustentar as suas margens de lucros. Sem falar em possíveis fraudes e cooptação do dinheiro público para o enriquecimento de pessoas físicas. Pelas questões elencadas acima, percebe-se que a saída para a crise no Rio Grande do Sul depende da retomada do crescimento econômico nacional. Não obstante, depende em muito, também, de elementos específicos relacionados às finanças públicas gaúchas. Panorama recente da economia gaúcha A partir de 2015, a economia gaúcha agrava a sua situação no bojo da recessão nacional causada, sobretudo, pelas políticas de austeridade e pela instabilidade política. Em 2015, como se nota no gráfico 2, houve contenção de despesas que foram incapazes de gerar superávit, dado que a Receita Corrente Líquida (RCL) declinou sobremaneira pela queda do PIB de 3,4%. Gráfico 2 - Despesa total ajustada e Receita Corrente Líquida do Rio Grande do Sul, 2006-2015, valores correntes Despesa - IRRF - Contribuição previdenciária a servidores - Transferências constitucionais Fonte: SEFAZ/RS e TCE/RS Em 2016, por sua vez, o Governo Estadual segue a cartilha ortodoxa de ajuste com o aumento de Impostos Indiretos (sobretudo ICMS) e a redução de gastos - expressa no gráfico 3 pela queda da despesa total ajustada. Em razão da queda do produto, todavia, a RCL fica praticamente estagnada. Gráfico 3 - Despesa total ajustada e RCL, excluída a receita oriunda da venda folha-Banrisul, variação do 1° semestre 2015 ao 1° semestre 2016, em valores reais Fonte: SEFAZ/RS e TCE/RS Diante desse cenário de ausência de crescimento econômico nacional e estadual as fontes de financiamento do Governo estadual devem ser rigorosamente analisadas numa postura política ativa, diferente da que se caracteriza o governo Sartori, de atitude imobilista e de discurso à la Margaret Thatcher ("there's no alternative"). Nesse sentido, as fontes de financiamento elencadas abaixo já deveriam ter sido urgentemente apreciadas: - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCD): Em 2015 o RS arrecadou R$ 632 milhões com o ITCD através de uma estrutura de alíquotas fixa de 4% sobre o valor de Heranças e de 3% sobre o valor de Doações (isto é, independente do valor, as alíquotas foram as mesmas). Caso o Governo estadual estivesse disposto a realizar, de fato, uma reforma progressista em que apenas Heranças e Doações de valores acima de R$ 500 mil fossem tributadas a uma alíquota efetiva de 8% (ainda baixa em relação à dos EUA, mas a alíquota máxima permitida pela resolução do Senado de 1992), teriam sido arrecadados aproximadamente R$ 1,78 bilhões nesse ano. Em 2016, no entanto, o governo Sartori (PMDB) optou por uma reforma nesse tributo bastante moderada, onerando valores a partir de R$ 35 mil (a uma alíquota de 3%) e tendo 6% como alíquota máxima apenas. - Desonerações Fiscais: Após aproximadamente 24 meses de gestão e de mais de 10 meses de parcelamento de salários de servidores desde o início de sua gestão, o Governo Sartori ainda não fez sequer uma análise criteriosa de revisão de desonerações fiscais. Em 2015, as desonerações fiscais alcançaram R$ 8,99 bilhões no estado, um valor 400% maior que o valor do déficit primário do RS no mesmo ano. Deste valor de R$ 8,99 bilhões, apenas 17% se destinam a microempresas e empresas de pequeno porte. R$ 2,5 bilhões se tratam de créditos presumidos, R$ 1,3 bilhões de reduções na base de cálculo e R$ 2,7 bilhões de isenções. Até então não houve por parte do Governo nenhuma análise e monitoramento de quantos empregos e do custo-benefício que esses incentivos fiscais estão trazendo à sociedade. Pelo contrário, essas renúncias de receitas vêm reiteradamente não sendo auditadas pelos órgãos de controle por deliberação política do governo, que sob o esponjoso argumento de sigilo fiscal pratica atos secretos, conforme denúncia do Ministério Público Estadual. - Sonegação fiscal De acordo com o Sindicato dos Técnicos Tributários do Rio Grande do Sul (AFOCEFE) em 2015 cerca de R$ 7 bilhões foram sonegados dos cofres gaúchos. Até o início de dezembro de 2016 calculou-se que a sonegação de ICMS por parte de empresas de grande porte já havia alcançado R$ 6,85 bilhões. Não se pode esquecer que o quadro de servidores da Receita Estadual abriga os mais altos salários do Poder Executivo. Considerando as remunerações brutas, têm média salarial de R$ 26,9 mil mensais. Isso sem contabilizar os penduricalhos e subsídios que driblam o teto do funcionalismo, hoje alçado em R$ 30,4 mil. Embora essa "legalidade ilegítima" seja mais característica do poder judiciário, estima-se que no mínimo 13% dos 1100 auditores registrados na folha da Secretaria da Fazenda do RS recebam acima do teto, quando incluída a rubrica de parcelas indenizatórias, vales e abonos. Espera-se que o combate à sonegação de recursos monetários do RS, por parte dessa categoria, esteja à altura dos seus vencimentos. Lei Kandir Entre 1996 e 2015, o Rio Grande do Sul teve uma perda líquida acumulada de R$ 27,258 bilhões (em valores correntes) relativa às desonerações proporcionadas pela lei Kandir. Corrigindo esse valor pelo mesmo indexador da dívida do estado, esse montante chega a R$ 48 bilhões. Estas perdas líquidas resultam da subtração entre as perdas de ICMS na desoneração das exportações de produtos primários e semielaborados (e de bens do ativo fixo) e a compensação da união através dos mecanismos da Lei 87/96 (seguro-receita e, após, fundo orçamentário) e do auxílio exportação (FEX) instituído a partir de 2004. Em 2015, a perda líquida alcançou R$ 3,925 bilhões, sendo a razão compensação sobre perdas brutas a menor existente desde o ano de 1996. Isto é, apenas 8,6% das perdas foram ressarcidas em 2015. Dívida Desde o Plano Real, quando se trocou inflação por dívida, os estados perderam a autonomia financeira administrativa prevista na CF/88. A adoção de juros estratosféricos no plano nacional fez com que a dívida do RS saltasse de R$ 25 bilhões em 1994 para R$ 55,6 bilhões em 1998 (a valores de dezembro de 2015). De maneira similar, essa evolução ocorreu em vários outros estados da Federação. Em particular, a partir da adoção da Lei Federal nº 9.496/97, a União, ao tentar resgatar a situação dos estados, agravou o comprometimento do orçamento estadual com a dívida. Não se pode esquecer que no Rio Grande do Sul esse contrato foi firmado com a União pelo então governador Antônio Britto (PMDB), durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), sendo na época o, hoje, governador Sartori o líder do PMDB na Assembleia Legislativa. Com esse contrato da dívida em vigor, o comprometimento da Receita Líquida Real com despesas da dívida saltou de 8% a.a. (% médio entre 1991 e 1997) para 13%. Entre 1998-2014, pela dívida extralimite, esse comprometimento alcançou 15,9% a.a. Nesse sentido, a Informação Técnica nº 16/2015-SAIPAG, do TCE-RS, destaca que, uma vez adotado o IPCA retroativamente ao início do contrato (em substituição ao IGP-DI 6,17% de juros a.a.), a dívida com a União já estaria paga em maio de 2013, tendo em maio de 2015 um crédito a favor do Estado de R$ 5,918 bilhões. Levando em conta que o pacto federativo deve primar por princípios de solidariedade e de complementariedade entre Estados e União, o governo do estado do RS deve ter postura política proativa na busca desses objetivos. Do contrário, o estado do RS continuará, financeiramente, dependente da União e sem capacidade de investir. Embora em fins de 2015, por exemplo, a dívida real gaúcha estivesse em torno de R$ 61,8 bilhões (um valor real não muito acima do valor de 1998), a razão entre as despesas com serviço da dívida e os investimentos se elevaram substancialmente. Entre 2006-2015 essa razão subiu de 2,6 para 4,6. Sem ciência, tecnologia e investimento não há chance nenhuma de se ter crescimento econômico sustentado. Por todas essas razões, o pacote do governo Sartori, enviado para apreciação da assembleia legislativa (sem nenhum diálogo com a sociedade, diga-se de passagem), não faz sentido algum. Ao propor a extinção de 9 fundações, que juntas não somam 0,4% das despesas do estado, o governo abdica justamente de instituições que têm por prerrogativa o planejamento socioeconômico e a proteção da biodiversidade do Rio Grande do Sul. Isto é, seja no campo da economia, da cultura ou da botânica trata-se de um núcleo estratégico e pensante para o desenvolvimento pleno do estado e que deveria ser valorizado e aproximado pelo governo. Não o contrário. Ademais, do ponto de vista financeiro, trata-se de proposta ineficiente, tendo em vista o custo de oportunidade que o governo terá ao ter que contratar consultorias privadas, de maior custo e de credibilidade incerta, para a realização dos serviços prestados por essas fundações. Sem mencionar o possível custo com demandas trabalhistas na justiça, fruto de interpretações jurídicas, e indenizações, e o efeito multiplicador recessivo no mercado de trabalho por conta da demissão de 1.200 trabalhadores. O conjunto de medidas previstas no pacote do Governo Sartori, portanto, não atuará no sentido de restabelecer a capacidade de financiamento do estado. Em realidade, ampliará o custo social da crise. Por fim, parece estar ficando cada vez mais claro para todos que a cúpula do Governo Sartori, para além de posições ideológicas, não apresenta capacidade técnica de enfrentar o desafio de gerir as finanças do Rio Grande do Sul. Porém, a que custo terá a sociedade gaúcha que suportar tamanho despreparo? Antônio Albano de Freitas Pesquisador da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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